Muriqui, para mim, sempre foi o nome de uma praia de Niterói, onde amigos meus do colégio tinham casa. Íamos de vez em quando para lá, nas férias. Nada demais. Mas a partir da semana passada, a minha percepção aumentou. Li no jornal e percebi que Muriqui é muito mais. Muriqui faz parte de uma história. A história de um libanês e sua família, a preservação da Mata Atlântica e seu jequitibá, e o percurso profissional de uma cientista americana. E além disso,para mim, agora, a cidade mineira de Caratinga, deixa de ser apenas a cidade do cartunista Ziraldo e da minha amiga Brígida, e passa a ser a cidade onde vivem os maiores primatas das Américas: os Muriquis.
Não vou contar toda a história, mas apenas um resumo rápido. O Sr. Feliciano Abdalla, filho de tropeiro libanês, resolveu se estabelecer na cidade mineira de Caratinga. Adquiriu terras. Uma fazenda: Fazenda Montes Claros. Quando comprou a fazenda, o antigo dono impôs uma condição: vendia apenas se o novo dono jurasse proteger a mata. Então, em uma parte dessa fazenda, cultivou café e, na outra, preservou a mata, embora muitos na cidade protestassem. Outro conselho reforçava o seu objetivo. Seu pai recomendara : “ ...cuidado com as matas, as madeiras, porque o fim disso será trágico.”
Os anos passaram, e chegaram os pesquisadores para estudar a mata atlântica e o seu habitat. Nela estavam os muriquis. Logo em seguida, por meio da divulgação de um vídeo “O Choro do Muriqui”, um emocionante apelo pela proteção da espécie, chega a Caratinga a pesquisadora Karen Strier, que fazia seu doutorado em Harvard. Ela vei estudar os Muriquis e mudou a tese estabelecida que todo primata é agressivo.
O estudo de mais de 20 anos ajudou a ciência a revelar um primata diferente: extremamente pacífico, seus grupos vivem sem hierarquia, sem dominância masculina, com explícitas demonstrações de afeto entre eles. O grupo dos Muriquis está crescendo e o limite da mata, agora, torna-se uma ameaça. O seu habitat é a Mata Atlântica. E novos questionamentos e desafios irão surgir.
Seu Feliciano morreu em 2000, aos 92 anos. Dias depois, o macaco mais velho apareceu morto, morre natural e, logo em seguida, o majestoso jequitibá caiu. Fim de uma parte da história que continua por intermédio da cientista e de do neto de Seu Feliciano.
Diante dessa história bonita de preservação, de um ideal conquistado, fica difícil exemplificar, em minha vida, algo parecido com valor semelhante. Fora as minhas memórias, lembranças más e boas, que conservo e preservo com requintes de exaltação, não tenho nada mais bonito a relatar sobre preservação. Acredito que existam várias modos de preservação. Fico, agora aqui, com três: a do meio ambiente, a da nossa memória emocional e a de nossa conduta. Todas buscando o mesmo fim: o nosso bem-estar.
Sempre tive o hábito de guardar. Guardo cartas. Guardava anúncios, imagens impressas, resto de papel, livros (nunca fui capaz de jogar nenhum fora). Mas, depois de um tempo, já não se justificava mais apenas guardar, apesar de sempre apropriar aos guardados uma função futura – para mim nada era inútil. Comecei a colecionar. Aí vieram os selos, os brinquedos, os gibis, LPs, os maços de cigarro (que nunca fumei), embalagens as mais diversas, revistas Veja e Bravo. As coleções foram crescendo e o espaço diminuindo. Um dia, de repente, resolvi, assim como tinha resolvido guardar, jogar tudo fora. Ficaram as cartas, os LPs (que não consigo vender), algumas Bravo, um carro de pilha (modelo jaguar vermelho, que abre o a mala do motor e gira feito uma enceradeira), alguns carrinhos de ferro, um gravador de rolo bege e verde bebê... Foi isso que preservei para a história. Exemplares remanescente dos anos 60 e 70, e que tem como maior valor a memória emocinal, de forma Proustiana, inerente a cada um.
Mas, um dia desses, parou em minhas mãos, um presente oferecido pela amiga Simone (se não colocar os créditos, sou um apátrida da nação amizade): um livro, “O mundo acabou”, de Alberto Villas. Nada de desgraça. Mas, uma coletânea de “guardados”, de um cotidiano que não existe mais, e que compõe o nosso imaginário. Hoje, constitui a nossa memória emocional. Estão ali copilados a nossa casa (a estante de e tijolo com prateleira de madeira, a enceradeira, as xícaras corolex, a colcha de chenile e os discos de vinil), o nosso quarda-roupa (o sapato vulcabrás, a galocha, a japona, o brim coringa, o kichute, mas faltou a camisa cacharrel), as nossas guloseimas (o pirulito de chocolate da Kibon, o biotônico Fontoura,o drops dulcora e a banana split nas lojas americanas), as nossas brincadeiras (o jogo de botão, o decalque,o “cadê o toucinho que estava aqui”, o mico preto, o bambolê, o forte apache, os soldadinhos do toddy, o “atirei o pau no gato” e a língua do P), as nossas tardes em frente a TV (o indizinho da tupi, o repórter esso, o vigilante rodoviário, o papai sabe tudo, o barquinho de papel, o topo gigio, roy rogers e faltaram muitos), a nossa fauna (o bicho-papão, os 3 porquinhos das Casas da Banha, o tucano da Varig, a gotinha e o tigre da Esso e o elefantinho da Shell), as coisas dos nossos pais (a glostora, a aqua velva, o rural willys, o simca chambord, o aero-willys, o vemaguet, mas faltou o carmanguia) e as coisas das nossas mães (a fotonovela e com ela o amigo da onça e o coppertone, o avon chama, a sloper, a pasta de dente kolynos, o lenço de papel e a enciclopédia conhecer).
Desses guardados, alguns são protagonistas e coadjuvantes de episódios, mais ou menos, pitorescos da minha vida. Na verdade, teria para cada um, uma pequena história para contar. Já contei a da Japona, que salvou a minha, então breve, infância. Dessa relação, tenho em minha lembrança duas coisas que remetem ao meu Tio Paizinho. O seu aero-willys e a loção pós barba aqua velva.
Para mim, o olfato era dos sentidos que mais me aguçava na presença desse meu Tio. Chamava os meus tios assim, por ouvir o meu primo chamá-los assim. E não pude, mesmo que quisesse, mudar ao longo da minha vida. Pois bem, o Paizinho sempre me despertou o olfato. Ele sempre estava perfumado com loção pós barba, o cabelo fixado e cuidadosamente penteado com um desses produtos tipo brilhantina. Eu sentia um frescor ao beijá-lo (isso daria um outro texto: as reminiscências do olfato). Mas, se por um lado o cheiro pós barba deixava-me leve, o cheiro e o calor de seu aero-willys marcaram as minhas manhãs de domingo. Tenho vaga lembrança, talvez pelas torturas que eram para mim. Enquanto a minha mãe e minha tia preparavam o almoço de domingo, meu pai e meu tio nos levavam para passear no aero-willys nas manhãs ensolaradas. Eram verdadeiras sessões de tortura. Eles nos enfiavam naquele carro grande e espaçoso. Sentia-me como se estivesse em uma sala forrada paredes de couro que ao sol do meio-dia nos aqueciam e deixavam o ar pesado e empestado. Para me arrasar de vez, no rádio, se não me engano, uma transmissão sofrível de algum programa esportivo português, “em direto” como eles diziam. Isso não só marcou de vez as minhas manhãs de domingo, como também enterrou para sempre qualquer intenção, por parte da ala masculina da família, de uma aproximação mais direta e objetiva com a paixão nacional (deles).
Mas não são só torturas as lembranças que me trouxeram esse livro. O barquinho de papel, por exemplo, para mim, é mais do que um brinquedo de infância. Ele me faz lembrar, diretamente, a exibição de uma novela na TV e que me transformou num pouco do que sou hoje, a “Pequena órfã”, com o Velho Gui, interpretado pelo excelente ator Dionísio Azevedo. A pequena órfã em questão, era uma menina loira e que quando se sentia desprotegida, pegava o seu barquinho de papel (acredito que feito pelo Velho Gui), sentava atrás do sofá e cantava uma música que lhe servia como um acalanto. Já desde menino, fui sendo doutrinado pela mídia, que as meninas loiras eram meigas, boas e que sofriam, e, por isso então, deveriam ter a minha maior atenção e proteção. Sempre fui mais chegado às loiras do que as morenas, acredito que seja pela referência a bondade, ao sofrimento e a santidade. Acho que Maria sempre foi meio aloirada. Em minha cabeça uma mistura de sagrado e profano.
Talvez, o maior dos modos de preservação que devemos nos ocupar hoje em dia, é o de preservar a boa conduta. Acredito que somos frutos do meio, e quando esse meio passa a mudar o nosso comportamento, é sinal que as coisas andam mal. Um dia, no trabalho, percebi que já não dava bom dia ou boa tarde com satisfação, saía meio tímido; oferecer um biscoito, bala ou qualquer coisa na hora do lanche não existia e atender o telefone do colega ao lado já não fazia mais parte de um comportamento gentil. Coisas tão corriqueiras do nosso cotidiano de trabalho estavam desaparecendo. Percebi que fazia isso de forma natural em outros lugares, mas não ali. Fiquei com medo, de começar a me transformar naquilo que nunca tinha sido e que não tinha vocação para ser. Aquilo começou a me incomodar e percebi que era hora de mudar. Mudar de lugar, para não me transformar naquilo que não era.
Isso é apenas um pequeno exemplo, mas se transferirmos isso para o nosso dia-dia-dia, nas ruas, lojas, restaurantes, em nossa casa...isso começará a ficar perigoso. A nossa conduta cordial desaparecerá, e no lugar dela, virá o individualismo, o egoísmo e a falta de atenção e gentileza com as pessoas ao nosso redor. Alguns dirão: “não tenho nada com isso. O telefone não é meu, porque devo atender?” Vivemos numa comunidade, e tudo ao nosso redor deve ser encarado como sendo de nossa responsabilidade, senão de sua origem, pelo menos, em sua manutenção. Ser gentil não custa. O que me custa é ver tanta indelicadeza, falta de educação e falta de compreensão entre as pessoas. Não quero crer que devemos chegar ao patrulhamento, mas não custa, de vez em quando, oferecer pílulas para os doentes desse mal.
Nessa minha viagem ao passado, por intermédio da preservação ao meio ambiente, aos bens materiais, as saudosas e boas reminiscências de nossas vidas, reflito. Devemos sim preservar as coisas que nos fazem bem e que nos mantêm vivos. Mas hoje, mais do que nunca, acho que a preservação deve-se dar a moldes mais modestos, pequenos em sua dimensão, mas grandes em repercussão. Devemos compor, como “soldados”, o exército de preservação dos bons modos, da tolerância, da compreensão, para que o mundo seja então, o que ainda não tive o prazer de conhecer em sua plenitude: mais humano e mais fácil de ser vivido.